21 de outubro de 2017

Olhando o mundo por outras frestas

Regina Dalcastagnè


Foto de Araquém Alcântara 



O xamã yanomami Davi Kopenawa dizia que “os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. É preciso, mais do que nunca, enxergar os que sonham ao nosso lado. E a literatura pode nos ajudar a ver melhor, mas, para isso, talvez seja preciso nos reposicionarmos diante do campo literário, afinal, ainda que nossa produção recente não reivindique mais a função de representar o Brasil, ela continua sendo herdeira de um projeto de nação – “uma comunidade imaginada”, nos termos de Benedict Anderson – que foi construído a partir do apagamento de diferenças, especialmente do apagamento da história e da cultura de mulheres, de negros e de indígenas. Por isso me parece tão importante refletir sobre o lugar de onde se imagina uma nação.
O Brasil é um país gigantesco, não apenas em suas dimensões espaciais, mas sobretudo em sua diversidade cultural. Falamos todos um único português, insistem alguns, desconhecendo e deslegitimando as variedades regionais, as contribuições africanas, as mais de 200 línguas indígenas que ainda sobrevivem em nosso território. Por isso, não dá para falar de “literatura brasileira” sem problematizar ambos os termos. Afinal, até onde chega o Brasil e o que aceitamos entender como literatura? 
Em 30 de dezembro de 1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A crítica perspicaz do autor apontava o risco de se reduzir a percepção sobre a realidade do país a essa perspectiva tão estreita. Infelizmente, 120 anos depois, e usando a Rua do Ouvidor agora apenas como uma metáfora da arrogância de certa elite intelectual dos centros mais desenvolvidos do país, precisamos continuar alertando: o Brasil chega muito mais longe do que costumamos imaginar. 
Sem me alongar demais, apresento três textos, todos escritos por mulheres, que me parecem esclarecedores da importância de se olhar o mundo por outras perspectivas. Primeiro, um poema de Conceição Evaristo, experiente escritora negra de Minas Gerais com uma produção de mais de 30 anos – tanto na poesia quanto na ficção, e mesmo na teoria. Depois, um poema de Meimei Bastos, jovem atriz e escritora da periferia de Brasília, ainda sem livro publicado. Por fim, um poema de Adelaide Ivánova, jornalista e fotógrafa de Recife que vive na Alemanha e tem dois livros publicados.
A perspectiva negra, feminina e trabalhadora de Conceição Evaristo revela um universo de exploração e racismo, mas também de luta e resistência. Temas que podem ser abordados por homens brancos de elite preocupados com a mesma situação, mas que, quando aparecem em suas obras, costumam vir como uma crítica distante, e socialmente situada. Lembro de um poema provocador de Chico Alvim (publicado em O elefante), que tem um título e um único verso: “Mas... é limpinha”. A brevidade do poema, que dialoga diretamente com o racismo à brasileira, esconde tudo aquilo que não precisaria ser dito sobre a empregada doméstica, porque é já uma certeza compartilhada entre patrões: “é negra, é pobre, por isso é feia, mas... é limpa e, assim, pode ser admitida dentro de casa”. E o diminutivo se faz presente, sempre com o intuito de familiarização e inferiorização. O poema é crítico, ironiza o discurso escravocrata de nossa elite, mas, ainda assim, nada diz, de fato, sobre a moça.
O mesmo acontece em A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, quando a autora coloca sua protagonista dentro do quarto da ex-empregada, diante de um desenho feito à carvão na parede: um homem, uma mulher e um cachorro, estáticos, imensos e atoleimados. Como centro do mundo, que imagina ser, a ex-patroa logo supõe que aquelas imagens sejam uma espécie de recado para si: “Olhei o mural onde eu devia estar sendo retratada... Eu, o Homem. E quanto ao cachorro – seria este o epíteto que ela me dava? Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência”. A partir daí, e do esmagamento de uma barata, G. H. entra em longas divagações sobre sua própria existência e Janair é soterrada. Dela, só nos sobra a descrição de um desenho na parede, descrição feita pela patroa – é bom lembrar –, contaminada pelo rancor e pelas diferenças de classe.
É preciso uma Carolina Maria de Jesus, ou uma Conceição Evaristo, como no poema abaixo (publicado nos Cadernos Negros), para dar voz a essa mulher:
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias,
debaixo das trouxas,
roupagens sujas dos brancos,
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos,
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes,
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Ao retirar as vozes engasgadas nas gargantas dessas mulheres, Conceição Evaristo traz para nossa literatura outros espaços de enunciação: os porões dos navios, os fundos das cozinhas alheias, o caminho empoeirado da favela, o próprio corpo silenciado que ergue a trouxa de roupas sujas. E marca, também, a diferença desses espaços em relação aos dos brancos-donos-de-tudo. Passado, presente e futuro se juntam na esperança de que essa experiência possa, enfim, ressoar.
A jovem Meimei Bastos já não discute o silenciamento que veio antes, ela é dona de sua própria voz – e voz é um termo importante nesse contexto porque Meimei surge nas batalhas de slam nas periferias de Brasília. Sua poesia nasce como voz, como performance. E, assim como em Conceição Evaristo, aborda a cidade pelo lado de fora, pelo seu “avesso”. Todos os nomes próprios são de regiões, bairros, avenidas e espaços públicos de Brasília ou de suas “cidades satélites”:

Tinha um EIXO atravessando meu peito
tão grande que dividia a minha alma em
L2 SUL e NORTE.
Uma W3 entalada na garganta virou nó.

Eles têm o Parque da Cidade,
Nós o Três Meninas,
Eles a Catedral,
Nós Santa Luzia,
Eles Sudoeste,
Nós Sol Nascente,
Eles o Lago Paranoá,
Nós Águas Lindas.

Sou filha da Maria,
que não é Santa e nem puta.
Nasci e me criei num paraíso que chamam de Val
e me formei na Universidade Estrutural.
Fui batizada no Santuário dos Pajés
por um guerreiro Fulni-ô.

Eu não troco o meu Recanto de Riachos Fundos
e Samambaias verdes pelas tuas Tesourinhas.
Essa Brasília não é minha.
Porque eu não sou planalto,
eu sou PERIFERIA!
Porque eu não sou concreto,
eu sou QUEBRADA!

A relação entre o traçado do Plano Piloto de Brasília e seu próprio corpo parece gerar uma identidade, que rapidamente é desconstruída a partir da marcação pronominal: há aqui um “nós” e um “eles”, que se comunicam, mas não se assimilam. A comparação entre a cidade, pretensamente rica e organizada, e as suas periferias pobres (que se somam na graça de seus nomes) ganha uma dimensão nova diante do grande volume de poemas existentes para celebrar Brasília, porque o eu enunciador faz sua escolha – entre planalto e periferia, entre concreto e quebrada – marcando de que lado prefere estar, e com quem.
Já Adelaide Ivánova, poeta de expressão feminista, sai da cidade e de suas periferias para nos levar para a um quarto asséptico, provavelmente frio e com luzes brancas. Mais que isso, ela nos leva direto para uma maca. A perspectiva é a da mulher deitada ali, com as pernas abertas enquanto os médicos conversam sobre greves, bares e copos descartáveis. Não é um lugar confortável: 

o urubu
corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

O poema (publicado no livro O martelo) é sobre um estupro, e talvez o mais angustiante dele seja esse sentimento de ordinário que o cerca, de um dia como qualquer outro – para eles. Os termos jurídicos retomam a violência do ato que não é pronunciado, que é mesmo esvaziado, a não ser pela perspectiva impotente do seu objeto, que vê de baixo para cima, isolado, mais uma vez violentado. Não é fácil olhar esse poema porque nos sentimos olhadas por ele – como nenhum homem poderia nos olhar a partir de sua escrita. 
Isso porque escritores não são, como muitas vezes gostam de se apresentar, os intérpretes descarnados de uma estética etérea, alheia ao barro que suja nossos pés. Sofrem constrangimentos idênticos aos de outros agentes sociais; veem o mundo de uma determinada perspectiva, socialmente estruturada, e participam de um campo que estimula alguns gestos e repertórios e veta outros. Por isso, é tão importante democratizar o acesso à voz literária – isto é, aumentar a pluralidade de perspectivas sociais capazes de se fazerem ouvir na literatura. Esse é um problema político, mas também, e essencialmente, literário, uma vez que novas perspectivas podem trazer novos modos de expressão, promovendo, quem sabe, uma espécie de alargamento no universo dos possíveis e permitindo compartilhar os sonhos dos que vivem entre nós.

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